sexta-feira, 29 de abril de 2011

Os Cus de Judas

Emir Kusturica - Underground (1995)



"Do que eu gostava mais no Jardim Zoológico era do rinque de patinagem sob as árvores e do professor preto muito direito a deslizar para trás no cimento em elipses vagarosas sem mover um músculo sequer, rodeado de meninas de saias curtas e botas brancas, que, se falassem, possuíam seguramente vozes tão de gaze como as que nos aeroportos anunciam a partida dos aviões, sílabas de algodão que se dissolvem nos ouvidos à maneira de fios de rebuçado na concha da língua. Não sei se lhe parece idiota o que vou dizer mas aos domingos de manhã, quando nós lá íamos com o meu pai, os bichos eram mais bichos, a solidão de esparguete da girafa assemelhava-se à de um Gulliver triste, e das lápides do cemitério dos cães subiam de tempos a tempos latidos aflitos de caniche. Cheirava aos corredores do Coliseu ao ar livre, cheios de esquisitos pássaros inventados em gaiolas de rede, avestruzes idênticas a professoras de ginástica solteiras, pinguins trôpegos de joanetes de contínuo, catatuas de cabeça à banda como apreciadores de quadros: no tanque dos hipopótamos inchava a lenta tranquilidade dos gordos, as cobras enrolavam-se em espirais moles de cagalhão, e os crocodilos acomodavam-se sem custo ao seu destino terciário de lagartixas patibulares. Os plátanos entre as jaulas acinzentavam-se como os nossos cabelos, e afigurava-se-me que, de certo modo, envelhecíamos juntos: o empregado de ancinho que empurrava as folhas para um balde aparentava-se, sem dúvida, ao cirurgião que me varreria as pedras da vesícula para um frasco coberto de rótulo de adesivo: uma menopausa vegetal em que os caroços da próstata e os nós dos troncos se aproximavam e confundiam irmanar-nos-ia na mesma melancolia sem ilusões: os queixais tombavam da boca como frutos podres, a pele da barriga pregueava-se de asperezas de casca. Mas não era impossível que um hálito cúmplice nos sacudisse as madeixas dos ramos mais altos, e uma tosse qualquer rompesse a custo o nevoeiro da surdez em mugidos de búzio, que a pouco e pouco adquiriam a tranquilizadora tonalidade da bronquite conjugal."

António Lobo Antunes - Os Cus de Judas (1979); 1ª página.

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Michael Haneke – Das Weiße Band (2009)


Pecado original = Medo?

É possível perceber em muitos dos indivíduos, assim ditos, crentes (cidadãos que se autodenominam como pessoas de bem, tementes a Deus), uma terrível forma distorcida de uma das mais fundamentais capacidades humanas – o discernimento. Não raro, confundem o próprio medo que têm de si próprios – ou do seja-lá-o-que-diabos conhecem pelo nome de pecado – como já sendo a virtude em si. Estão enganados; medo é medo, nada mais.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

O Arco-Íris da Gravidade

Thomas Pynchon - Gravity's Rainbow (1973) , capa da 1ª edição.


Eis então aquele que considero um dos melhores inícios de livro de todos os tempos, o meu favorito:

"Um grito atravessa o céu. Já aconteceu antes, mas nada que se compare com esta vez.

É tarde demais. A Evacuação ainda continua, mas é tudo teatro. Não há luzes dentro dos vagões. Não há luz em lugar nenhum. Acima de sua cabeça elevam-se vigas velhas como uma rainha de aço, e em algum lugar lá no alto vidro que deixaria entrar a luz do dia. Mas é noite. Ele tem medo do modo como o vidro vai cair – em breve –, vai ser um espetáculo: o desabamento de um palácio de cristal. Porém caindo na escuridão total, sem nenhum lampejo de luz, só um grande estrondo invisível.

Sentado dentro do vagão, que tem vários níveis, imerso numa escuridão de veludo, sem nada para fumar, ele sente metal mais perto e mais longe rangendo e estalando, baforadas de vapor escapulindo, uma vibração na carroceria do vagão, uma expectativa, uma inquietação, todos os outros comprimindo-se a sua volta, os fracos, carneiros da segunda leva, todos desprovidos de sorte e tempo: bêbados, velhos ex-combatentes ainda em estado de choque por efeito de tiros de canhões obsoletos há 20 anos, vigaristas com trajes de cidade, vagabundos, mulheres exaustas com mais filhos do que parece possível uma pessoa ter, empilhados junto com as outras coisas a ser conduzidas à salvação. Só os rostos mais próximos são visíveis, e mesmo assim como imagens vagas num visor, rostos esverdeados de VIPS entrevistos por detrás de janelas à prova de bala disparando pela rua…

Começaram a andar. Vão em fila, saindo da estação principal, do centro da cidade, rumo aos bairros mais velhos e desolados. É por aqui que se sai? Rostos voltam-se para as janelas, mas ninguém ousa perguntar, não em voz alta. Chove. Não, não se trata de um desvencilhar, e sim de um emaranhamento – passam por baixo de arcos, entradas secretas de concreto podre que apenas pareciam ser o trevo de um viaduto… uns cavaletes de madeira escurecida deslizam lentamente por cima deles, e já começaram os cheiros de carvão de um passado distante, cheiros de nafta no inverno, em domingos em que não havia tráfego algum, das formações feito coral, de uma vitalidade misteriosa, em torno das curvas cegas e desvios desertos, um cheiro azedo de vagões ausentes, de ferrugem velha, a crescer naqueles dias cada vez mais vazios, luminosos e profundos, especialmente ao amanhecer, com sombras azuis selando sua passagem, tentando reduzir os acontecimentos ao Zero Absoluto… e quanto mais avançam mais pobre é tudo a sua volta… cidades secretas e decrépitas dos pobres, lugares com nomes que ele nunca ouviu antes… paredes destruídas, cada vez menos telhados, cada vez menos possibilidades de luz. A estrada, que devia abrir-se numa outra mais larga, em vez disso é cada vez mais estreita, mais quebrada, com esquinas cada vez mais fechadas, até que de repente, cedo demais, eles se vêem debaixo do arco final: uma freada e um sacolejo terrível. É um juízo que não permite recurso.

A caravana parou. É o fim da linha. Todos os evacuados recebem ordem de saltar. Andam devagar, mas sem opor resistência. Aqueles que os conduzem têm na cabeça rosetas cor de chumbo, e não falam. É algum hotel enorme, velhíssimo, escuríssimo, uma extensão de ferro dos trilhos e chaves que os trouxeram até aqui… Luminárias globulares, pintadas de verde-escuro, que há séculos não são acesas, pendem dos beirais de ferro trabalhado… a multidão avança sem murmúrios nem tosses por corredores retos e funcionais como os de um depósito… superfícies de um negro aveludado envolvem esta movimentação: um cheiro de madeira velha, de alas remotas há anos abandonadas recém-reabertas para armazenar este amontoado de almas, de reboco frio onde todos os ratos morreram, só restam seus fantasmas, imóveis como pinturas rupestres, teimosos e luminosos nas paredes… os evacuados são levados em grupos, num elevador – um andaime móvel de madeira, aberto em todos os lados, suspenso por cordas velhas sujas de breu e roldanas de ferro fundido com raios em forma de S. Em cada pardacento, saltam e entram passageiros… milhares de cômodos silenciosos sem luz…

Alguns aguardam a sós, alguns dividem os quartos invisíveis com outros. Invisíveis, sim, pois que importa a mobília nesta etapa dos acontecimentos? Os sapatos pisam a sujeira mais velha da cidade, as últimas cristalizações de tudo que a cidade negara, ameaçara, mentira a seus filhos. Cada um ouve uma voz, que lhe dá a impressão de falar só para ele, dizendo: "No fundo você não acreditava que ia ser salvo. Ora, a esta altura todos nós já sabemos quem somos. Ninguém jamais iria se dar ao trabalho de salvar você , meu caro…".

Não há saída. É deitar-se e esperar, em silêncio. O grito se sustenta no céu. Quando vier, virá na escuridão ou trará sua própria luz? A luz virá antes ou depois?

Mas já é dia. Há quanto tempo estará claro? Esse tempo todo a luz estava entrando, filtrada, juntamente com o ar frio da manhã que agora roça seus mamilos: começa a revelar um amontoado de vagabundos bêbados, uns de uniforme, outros à paisana, agarrados a garrafas vazias ou quase vazias, um jogado sobre uma cadeira, outro encolhido dentro de uma lareira fria, outros esparramados em diversos divãs, tapetes empoeirados e chaises-longues, nos diferentes níveis da sala enorme, roncando e ofegando em diversos ritmos, num coro incessante, enquanto a luz londrina, luz hibernal e elástica, cresce entre as faces das janelas de caixilhos, cresce entre as camadas de fumaça da noite passada que ainda paira, a dissipar-se, entre as vigas enceradas do teto. Todos esses supinos, esses companheiros de luta, têm rostos rosados de camponeses holandeses sonhando com a ressurreição certeira nos próximos minutos."

Thomas Pynchon - O Arco-Íris da Gravidade; 1ª Parte - Além do Zero, páginas 9, 10 e 11. Tradução de Paulo Henriques Britto

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Luiz Fernando Carvalho - Lavoura Arcaica (2001)


Pequeno aforismo sem título

Um pai amaldiçoa um filho com a brevidade da vida – um reducto absurdum de toda experiência humana.
O tempo é o preço da memória; a existência só existe na consciência.
Aqueles que ainda não morreram, matam os que já estão mortos.

Sobrevivente - 2




"Parte da minha estratégia para seduzir Fetility Hollis é ficar feio de propósito, e começo ficando sujo. Meio grosseiro nas pontas. É difícil se sujar plantando quando você nem ao menos toca na terra, mas minhas roupas fedem a veneno, e meu nariz está meio queimado do sol. Com o caule de arame de um copo-de-leite de plástico, corto um punhado de adubo endurecido e esfrego no cabelo. Enfio a terra embaixo das unhas.

Deus me livre de tentar mostrar uma boa aparência para Fertility Hollis. A pior estratégia seria tentar me melhorar. Seria um grande erro eu me arrumar todo, me esforçar ao máximo, pentear o cabelo, talvez até pegar emprestado umas roupas elegantes do homem para quem trabalho, algo 100% algodão, uma camisa em tom pastel, escovar os dentes, passar o que eles chamam de desodorante e adentrar o Mausoléu de Columbia para meu segundo encontro ainda feio, mas mostrando sinais de que tentei de tudo para ficar bonito.

Então aqui estou eu. Melhor que isso é impossível. É pegar ou largar.

Como se eu não estivesse nem aí para o que ela pensa.

Ficar bonito não faz parte do grande plano. Meu plano é parecer que tenho um potencial não explorado. A aparência que quero é de algo natural. Verdadeiro. A aparência que procuro é a de material bruto. Não desesperado e carente, mas cheio de potencial. Não faminto. Claro, quero mostrar que valho o esforço. Lavado mas não passado. Limpo mas não polido. Confiante mas humilde.

Sincero é como quero parecer. A verdade não brilha nem reluz.

Isto aqui é uma agressão passiva em ação."

Chuck Palahniuk - Sobrevivente; Capítulo 38, páginas 63 e 64.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Mr. Bungle – Disco Volante (1995)



Track listing

1. "Everyone I Went to High School With Is Dead" (words/music: Dunn) – 2:45
2. "Chemical Marriage" (music: Spruance) – 3:09
3. "Sleep (Part II): Carry Stress in the Jaw" – 8:59
a) "Sleep (Part II): Carry Stress in the Jaw" (words/music: Dunn)- 4:42
b) Untitled - 4:17

4. "Desert Search for Techno Allah" (words: Spruance, music: Patton/Spruance) – 5:24
5. "Violenza Domestica" (words: Patton, music: Patton/Spruance) – 5:14
6. "After School Special" (words: Dunn/McKinnon/Patton, music: McKinnon) – 2:47
7. "Sleep (Part III): Phlegmatics" (words/music: Dunn) – 3:16
8. "Ma Meeshka Mow Skwoz" (words/music: Spruance) – 6:06
9. "The Bends" (music: Patton/McKinnon/Spruance) - 10:28
a) "Man Overboard"- :41
b) "The Drowning Flute"- :52
c) "Aqua Swing"- 1:56
d) "Follow the Bubbles"- :14
e) "Duet for Guitar and Oxygen Tank"- :51
f) "Nerve Damage"- :38
g) "Screaming Bends"- :40
h) "Panic in Blue"- :57
i) "Love on the Event Horizon"- 1:29
j) "Re-Entry"- 1:46

10. "Backstrokin'" (music: Patton) – 2:27
11. "Platypus" (words: Dunn, music: Dunn/Spruance) – 5:07
12. "Merry Go Bye Bye"/Untitled – 12:58
a) "Merry Go Bye Bye" (words/music: Spruance)- 6:22
b) Untitled - 5:48



Personnel

* Mike Patton – vocals, microcassette, organs on tracks 9 and 10, ocarina on track 3
* Trevor Dunn – bass guitar
* Trey Spruance – pipa, keyboard/organs, guitar, electronics, artwork
* Clinton McKinnon – tenor saxophone, clarinet, keyboard on track 6, drums on track 5
* Danny Heifetz – drums
* Theo Lengyel – clarinet, flute, alto saxophone, trombone, zills

Download: http://www.megaupload.com/?d=GJUDMB4Z

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Jan Svankmajer - Tma/Svetlo/Tma (1989)



Silogismo vítimista

Estamos vivendo em meio a um vítimismo fatalista – um mundo onde todos são vítimas, vítimas das vítimas, vítimas de si mesmos; em uma eterna busca por culpados imaginários.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Um conto minimalista de David Foster Wallace

David Lynch - Blue Velvet (1986)


Segue o conto, no original e na tradução, "A radically condensed history of postindustrial life", conto de abertura do livro Brief Interviews with hideous men, escrito pelo meu ídolo e mentor David Foster Wallace.

A radically condensed history of postindustrial life

When they were introduced, he made a witticism, hoping to be liked. She laughed extremely hard, hoping to be liked. Then each drove home alone, staring straight ahead, with the very same twist to their faces.

The man who’d introduced them didn’t much like either of them, though he acted as if he did, anxious as he was to preserve good relations all times. One never know, after all, now did one now did one now did one.


Uma história radicalmente condensada da vida pós-industrial

Quando foram apresentados, ele fez uma piada, esperando ser apreciado. Ela riu extremamente forte, esperando ser apreciada. Depois, cada um voltou para casa sozinho em seu carro, olhando direto para a frente, com a mesma contração no rosto.

O homem que apresentou os dois não gostava muito de nenhum deles, embora agisse como se gostasse, ansioso como estava para conservar boas relações a todo momento. Nunca se sabe, afinal, não é mesmo não é mesmo não é mesmo.

Tradução de José Rubens Siqueira

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Jackson Pollock - Number 3 (1950)


a) O existir humano é o organizar o caos;
b) Para sobreviver na entropia, a paranóia é obrigatória. Pynchon explica;
c) A vida brilha mais quando se vê cercada pelas sombras da morte. Ela é vaidosa;
d) A principal qualidade da vida é a morte;
e) Teremos que aprender a nos distrair com o vazio.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

2

Timur Bekmambetov - Nochnoy Dozor (2004)


Si fallor, sum

Ajudar é um erro.

Nenhum gesto – nada –, por mais precioso que possa vir a ser, terá um alcance tão profundo e importante quanto teria, esse mesmo gesto, se tivesse partido das próprias mãos daquele que está a ser ajudado.

Somos naturalmente inclinados ao desinteresse pelo que "vem de fora". Ser humano, na maior parte do tempo, significa Ser egoísta.

Sobrevivente



"Hoje é um daqueles dias em que o sol sai para te humilhar."
Chuck Palahniuk - Sobrevivente; capítulo 44, página 31.

1

David Lynch - Lost Highway (1997)



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Por "processo": tudo aquilo que Ainda não terminou; mas já começou…
Começou, de novo.
Mas até quando dessa vez?