quarta-feira, 25 de maio de 2011

13

Lynne Ramsay - Ratcatcher (1999)



"Essa é uma daquelas raras vezes em que você se depara com uma sutileza densa."
Frase dita por um grande amigo, em uma ocasião que eu não lembro qual foi.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Breves Entrevistas Com Homens Hediondos

B. E. n° 46 07-97
Nutley NJ


“Ó eu – ou pense no Holocausto. O Holocausto foi uma coisa boa? De jeito nenhum. Alguém pensa que foi bom que aconteceu? De jeito nenhum. Já leu Viktor Frankl? O homem em busca de sentido, de Viktor Frankl? É um grande, grande livro. Frankl esteve em um campo no Holocausto e o livro vem dessa experiência, é sobre a experiência dele com o Lado Escuro da humanidade, conservando a identidade humana diante da degradação, da violência do campo e do sofrimento do total arrancamento da identidade dele. É um livro absolutamente grande e agora pense que, se não tivesse acontecido o Holocausto, não existiria o homem em busca de sentido.”
P.
“Ó eu estava tentando dizer é que tem de cuidar para não tomar nenhuma atitude careta quanto à violência e degradação no caso das mulheres também. Tomar uma atitude careta a respeito de qualquer coisa é um grande erro, é isso que eu estou dizendo. Mas estou dizendo especialmente no caso das mulheres, em que isso acaba se transformando nessa coisa condescendente muito limitada de dizer que elas são coisinhas frágeis, quebradiças, que podem ser destruídas com tanta facilidade. Como se a gente tivesse que embrulhar as mulheres em algodão e proteger mais do que os outros. Isso é careta e condescendente. Estou falando de dignidade e respeito, não tratando as mulheres como se elas fossem umas bonequinhas frágeis ou sei lá. Todo mundo é machucado, violado, quebrado às vezes, por que as mulheres são tão especiais?”
P.
“Ó estou dizendo é que quem somos nós para dizer que ser vítima de incesto, de abuso, violação, sei lá, qualquer coisa dessas não pode ter também seus aspectos positivos para um ser humano a longo prazo? Não que tenha o tempo todo, mas quem somos nós para dizer que nunca tem, de um jeito careta? Não que ninguém tenha de ser estuprado ou abusado, nem que isso não seja totalmente terrível, negativo e errado enquanto está acontecendo, nem pensar. Ninguém nunca disse isso. Mas isso enquanto Está acontecendo. O estupro, a violação, o incesto, o abuso, enquanto está acontecendo. E depois? E mais adiante, no panorama geral aí, de como a cabeça dela lida com o que está acontecendo com ela, se ajusta para lidar com aquilo, o jeito como o que aconteceu passa a fazer parte de quem ela é? Ó estou dizendo que não é impossível que tenha casos em que isso amplia a pessoa. Faz a pessoa ser mais do que era antes. Um ser humano mais completo. Como Viktor Frankl. Ou aquele ditado de que o que não mata, engorda. Acha que quem falou isso falou foi para uma mulher que estava sendo estuprada? De jeito nenhum. A pessoa só não estava sendo careta. ”
P. …
“Não estou dizendo que não exista essa coisa de ser vítima. Ó estou dizendo é que a gente tende às vezes a ser muito limitado com a miríade de coisas diferentes que entram em conta para fazer uma pessoa ser quem é. Estou dizendo que a gente fica tão careta e condescendente com direitos, com perfeita justiça, com proteger as pessoas que ninguém pára para lembrar que ninguém é só vítima e nada é negativo ou injusto – quase nada é desse jeito. Ó – como é possível que as piores coisas que podem acontecer com você acabem sendo fatores positivos para quem você é. O que você é, ser um ser humano completo em vez de um – pense como é ser estuprada por uma gangue, degradada, espancada até quase morrer, por exemplo. Ninguém vai dizer que isso é bom, não estou dizendo isso, ninguém vai dizer que os filhos-da-puta doentes que fazem isso não têm de ir para a cadeia. Ninguém está sugerindo que ela estava gostando enquanto estava acontecendo nem que devia acontecer. Mas vamos botar duas coisas no lugar aqui. Uma é que, depois, ela sabe uma coisa sobre ela mesma que não sabia antes. ”
P.
“ O que ela sabe é que a coisa mais totalmente terrível e degradante que ela podia sequer imaginar que aconteceria com ela aconteceu de verdade com ela agora. E que ela sobreviveu. Ainda está ali. Não estou dizendo que está contente, não estou dizendo que está contente com a coisa nem que está em grande forma e pulando de contente porque aconteceu, mas ainda está ali e sabe disso, agora sabe de uma coisa. Estou dizendo que ela sabe de fato. A idéia que ela tem dela mesma e aquilo que ela pode viver e a que pode sobreviver é maior agora. Ampliou, cresceu, se aprofundou. Ela está mais forte do que nunca jamais pensou lá no fundo dela e agora sabe disso, ela sabe que é forte de um jeito totalmente diferente de saber só porque seus pais disseram para você ou porque alguém que faz discurso na reunião da escola faz você repetir que você é Alguém, que você é Forte, repetir, repetir. Ó estou dizendo é que ela não é a mesma e como alguns jeitos de ela não ser a mesma, exemplo, se ela ainda tem medo de ir até o carro à meia-noite num estacionamento ou sei lá de ser assaltada e estuprada por um bando, ela agora tem medo de um jeito diferente. Não que ela queira que aconteça de novo, ser estuprada por um bando, de jeito nenhum. Mas ela agora sabe que isso não mata, que ela sobrevive, que não vai eliminar quem ela é, nem fazer ela virar sub-humana.”
P. …
“E além disso ela agora sabe também mais sobre a condição humana, o sofrimento, o terror, a degradação. Quer dizer, todo mundo admite que o sofrimento e o horror fazem parte do estar vivo, do existir, ou pelo menos se fala da boca para fora que se sabe disso, da condição humana. Mas agora ela sabe mesmo. Não estou dizendo que está contente com isso. Mas pense como a visão de mundo dela é maior agora, como o quadro geral agora é mais amplo e mais profundo na cabeça dela. Ela é capaz de entender o sofrimento de um jeito totalmente diferente. Ela é mais do que era. Só isso que estou dizendo. Mais ser humano. Agora ela sabe uma coisa que você não sabe.”
P.
“Essa é a reação careta, é disso que estou falando, pegar tudo que eu estou dizendo, pegar e filtrar pela sua visão estreita do mundo e dizer que estou dizendo Ah os caras que estupraram ela fizeram um favor. Porque não é isso que eu estou dizendo. Não estou dizendo que foi bom, ou que foi certo, ou que devia ter acontecido, ou que ela não ficou completamente fodida com aquilo, abalada, ou que devia mesmo ter acontecido. Porque em qualquer caso de uma mulher que está sendo estuprada por um bando, ou violada ou sei lá, se eu estivesse lá e tivesse o poder de dizer ou Vá em frente ou Pare, eu parava. Mas não posso. Ninguém pode. Coisas absolutamente terríveis acontecem. A existência e a vida dobram as pessoas de uma porrada de jeitos horríveis o tempo todo. Pode acreditar, eu sei, eu estive lá.”
P.
“E eu acabo achando que é essa a verdadeira diferença. Você e eu aqui. Porque isto aqui não é de fato questão de política, de feminismo, sei lá. Para você isto é tudo idéias, você acha que estamos falando de idéias. Você não esteve lá. Não estou dizendo que nada de mau nunca aconteceu para você, você tem boa aparência e aposto que alguma degradação, sei lá, já apareceu para você na vida. Não é isso que eu estou dizendo. Mas estamos falando aqui é da violação total, do sofrimento, do terror do tipo Holocausto do Homem em busca de sentido de Frankl. O Lado Escuro de verdade. E, meu bem, posso dizer só de olhar para você que você nunca. Você nem vestiria o que está vestindo, pode crer. ”
P.
“ Que você pode admitir que acredita, é, ok, que a condição humana é cheia de terríveis horríveis sofrimentos humanos e que você pode sobreviver a qualquer coisa, sei lá. Mesmo que você acredite de verdade. Você acredita, mas e se eu disser que eu não acredito só, que eu sei? Isso faz alguma diferença no que eu estou falando? E se eu disser para você que minha própria esposa foi estuprada por um bando? Não tem mais tanta certeza, não é? E se eu contar para você uma historinha de uma garota de dezesseis anos que foi à festa errada com o rapaz errado e com os amigos dele e que ela acabou sendo – depois de fazer com ela quase tudo que quatro sujeitos podem fazer com você em termos de violação. Seis semanas no hospital. E se eu disser para você que ela ainda tem de fazer diálise duas vezes por semana, foi a esse ponto o que eles fizeram com ela?”
P.
“ E se eu disser para você que ela de jeito nenhum pediu aquilo, sentiu prazer naquilo, gostou daquilo, ou gosta de ter só meio rim e se ela pudesse voltar e tivesse um jeito de parar aquilo ela pararia, mas se você perguntar para ela se ela pudesse entrar dentro da cabeça dela e esquecer, ou apagar a fita da coisa acontecendo na memória dela, o que você acha que ela ia dizer? Tem tanta certeza do que ela diria? Que ela gostaria de nunca ter de, assim, estruturar a cabeça dela para lidar com a coisa acontecendo com ela ou de de repente saber que o mundo pode dobrar você bem assim. Saber que um outro ser humano, esses sujeitos, podem olhar para você ali na cama e do jeito mais totalmente profundo entender você como uma coisa, não como uma pessoa, uma coisa, uma boneca de foda, um saco de pancada, um buraco, só como um buraco para enfiar uma garrafa de Jack Daniels tão fundo que ela explode seus rins – se ela disser depois que, mesmo sendo totalmente negativo o que aconteceu, agora pelo menos ela sabe que é possível, que as pessoas são capazes.”
P.
“ Ver você como uma coisa, que eles são capazes de ver como uma coisa. Sabe o que isso quer dizer? É terrível, nós sabemos o quanto isso é terrível enquanto idéia, que é errado, e achamos que sabemos todas essas coisas sobre direitos humanos e dignidade humana e como é terrível tirar a humanidade de alguém, é só isso que a gente diz, a humanidade de alguém, mas ver a coisa acontecer com você, ver, e agora você sabe de verdade. Não é só uma idéia ou uma causa para ficar todo careta. Faça acontecer isso e você tem um gostinho de verdade do Lado Escuro. Não só a idéia de escuro, o genuíno Lado Escuro. E agora você sabe o poder que isso tem. O poder total. Porque se você consegue realmente ver alguém como uma coisa você pode fazer com o outro qualquer coisa, fica tudo de fora, humanidade, dignidade, direitos, justiça – tudo de fora. Ó – e se ela dissesse que é como um pequeno e caro tour por um lado da condição humana de que todo mundo fala como se soubesse, mas que realmente ninguém consegue nem imaginar, não de verdade, não a menos que você tenha estado lá. Então o negócio é que o jeito de ela ver o mundo se ampliou, e se eu disser isso? O que você diria? E dela, como ela agora entendeu a si mesma. Que agora ela entendeu que pode ser entendida como uma coisa. Você consegue perceber o quanto isso ia mudar – ia dilacerar, o quanto isso ia dilacerar? De si mesma, de você, o que você costumava pensar como você? Iria dilacerar isso. Depois o que sobraria? Consegue imaginar, você acha? É o que o Viktor Frankl no livro dele diz que no pior momento do campo do Holocausto, quando sua liberdade era tirada, a sua privacidade e a sua dignidade, porque você está nu num campo lotado e tem de ir ao banheiro na frente de todo mundo porque não existe mais nada como privacidade e sua mulher morta, seus filhos morrendo de fome com você olhando e não tem comida, nem aquecimento, nem cobertor, tratam vocês como ratos porque para eles realmente vocês são realmente ratos, não um ser humano, e chamam você, levam você para dentro, torturam você, assim, tortura científica para eles mostrarem para você que eles podem até tirar o seu corpo, o seu corpo nem é você mais, é o inimigo, é essa coisa que eles usam para torturar você porque para eles é só uma coisa e eles estão fazendo experimentos científicos com ele, não é nem sadismo, eles não estão sendo sádicos porque para eles não é um ser humano que estão torturando – isso quando tudo o que tem qualquer ligação com o você que você pensa que você é é arrebatado e agora tudo o que sobra é apenas: o quê?, o que sobra, sobra alguma coisa? Você ainda está vivo, então o que resta de você? O que é isso? O que você significa agora? Veja bem, é hora do show, agora é quando você descobre o que você até é para si mesmo. Coisa que a maior parte das pessoas com dignidade, humanidade, direito e tudo aquilo lá não chega nem a conhecer. O que é possível. Que nada é automaticamente sagrado. É disso que Frankl fala. Que é através do sofrimento, do terror e do Lado Escuro que o que sobra se abre e depois disso você sabe.”
P.
“E se eu disser para você que ela disse que não foi a violação, nem o terror, nem a dor, nem nada disso, que – que a maior parte, depois, de tentar, assim, estruturar a cabeça em torno daquilo, de encaixar o que aconteceu no mundo dela, que a pior parte, a parte mais dura de tudo era agora saber que ela podia pensar em si mesma daquele jeito também se quisesse. Como coisa. Que é totalmente possível pensar em si mesmo não como você, nem como uma pessoa, mas apenas uma coisa, igual foi para os quatro sujeitos. E como era fácil e poderoso fazer isso, pensar isso, mesmo enquanto a violação estava acontecendo, simplesmente se dividir e flutuar assim até o teto e de lá olhar para baixo e a coisa é você, não significa nada, não há nada que aquilo automaticamente signifique, e é uma liberdade e um poder muito intensos de muitas formas, que agora tudo se acabou e foi tudo tirado de você e você pode fazer qualquer coisa para qualquer um, até para si mesmo se você quiser porque quem se importa que importância tem porque o que você é afinal senão essa coisa onde se enfia uma garrafa de Jack Daniels, e quem liga se é uma garrafa, que diferença faz se é um pinto, um punho, um desentupidor de pia, ou esta bengala aqui – como seria capaz de ser assim? Você acha que é capaz de imaginar? Acha que pode, mas não pode. Mas e seu disser que ela agora pode? E se eu disser para você que ela pode porque com ela isso aconteceu e ela sabe totalmente que é possível ser só uma coisa, mas bem como Viktor Frankl que cada minuto de então em diante minuto a minuto se você quiser você pode escolher ser mais se você quiser, você pode escolher ser um ser humano e fazer isso significar alguma coisa? Então o que você diria?”
P.
“ Eu estou calmo, não se preocupe comigo. É como essa coisa do Frankl de aprender que não é automático, como é uma questão de escolha ser um ser humano com direitos sagrados em vez de uma coisa ou um rato e a maioria das pessoas é tão convencida e careta e anda por aí adormecida nem sabe que uma coisa que você tem de realmente escolher para si mesmo que só tem sentido quando todos os, assim, objetos de cena e cenários que fazem você andar por aí achando presunçosamente que você não é uma coisa, essas coisas são arrebatadas e quebradas porque de repente agora o mundo entende você como uma coisa, todo mundo pensa que você é um rato ou uma coisa e agora depende de você, você é o único que pode decidir se você é mais. E se eu disser que nem era casado? E daí? Então é hora do show, acredite em mim, meu bem, me acredite, todo mundo que nunca sofreu esse tipo de ataque total e de violação em que tudo o que eles pensavam que tinham nascido automaticamente com aquilo isso presunçosamente permite que eles andem por aí achando que são automaticamente mais que uma coisa acaba despido, dobrado e colocado dentro de uma garrafa de Jack Daniels enfiada na sua bunda por quatro sujeitos bêbados cuja idéia de divertimento é o seu sofrimento, sua violação, um jeito de matar umas horas, nada muito importante, nenhum deles provavelmente sequer se lembra, que ninguém que passou realmente por isso jamais consegue ser assim tão amplo depois, sabendo sempre lá no fundo que é sempre uma escolha, que é você que está inventando você mesmo segundo a segundo todos os segundos de agora em diante, que a única pessoa que pensa que você é uma pessoa a cada segundo é você e você pode parar assim que quiser e sempre que quiser voltar a ser apenas uma coisa que come fode caga tenta dormir vai para a diálise e recebe garrafas quadradas enfiadas tão fundo na bunda que ela quebra por obra de quatros sujeitos que te chutaram os culhões para fazer você se dobrar que você nem conhecia nem nunca tinha visto antes e nunca tinha feito nada contra para fazer qualquer sentido eles quererem te dar uma joelhada, ou te estuprar, ou sequer pedir por esse tipo de total degradação. Que nem sabem o seu nome, você nem nome tem. Você não tem automaticamente um nome, não é uma coisa que simplesmente se tem, sabe. Para descobrir você tem até de escolher até ter um nome ou ser mais do que apenas uma máquina programada com diferentes reações quando eles fazem coisas diferentes com você quando eles pensam neles para passar o tempo até se cansarem e aí é tudo com você cada segundo depois e se eu dissesse que aconteceu comigo? Que diferença faria isso? Vocês que são todos tão cheios de política careta sobre as suas idéias sobre vítimas? Tem de ser uma mulher? Você acha, talvez você ache que pode imaginar a coisa melhor se for uma mulher porque os atributos externos dela parecem mais com os seus então é mais fácil ver ela como ser humano que está sendo violado de forma que se fosse alguém com um pau e não tetas não seria tão real para você? E se não fosse o povo judeu no Holocausto, se fosse só eu no Holocausto? Quem você acha que ia se importar? Acha que alguém se importou com Viktor Frankl ou admirou a humanidade dele até ele dar a todos O homem em busca de sentido? Não estou dizendo que aconteceu comigo, com ele ou com a minha esposa nem mesmo que aconteceu, mas e se aconteceu? E se eu fizesse isso com você? Bem aqui? Te estuprasse com uma garrafa? Acha que faria alguma diferença? Por quê? O que você é? Como você sabe? Você não sabe merda nenhuma. ”

David Foster Wallace, Brief Interviews With Hideous Men.
Páginas 137, 138, 139, 140, 141, 142, 143, 144, 145 e 146.
Tradução de José Rubens Siqueira.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

12

Jacques Tati - Play Time (1967)



O único jeito de se conhecer bem uma cidade é se perdendo dentro dela.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

11

Carlos Reygadas - Stellet licht (2007)



Pequeno aforismo sem título n° 2

O mundo é finito, assim como o homem; contudo, contém dentro de si o infinito – intrínseco em tudo aquilo que ainda está invisível.

O devir do espírito, inserido dentro do tempo inexorável, é – em si – incálculavel.

A sinfonia do caos é, em quase toda sua extensão, silenciosa.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Fotografias Fenomenológicas – n° 2

Harmony Korine - Gummo (1997)



Azul

A luz fria das 18 horas desce através do céu de Abril; suas lâminas afiadas, refratadas nas minúsculas ondas de cloro da água adormecida sob a piscina, pintam cinematograficamente a face do menino, sentado à beira da piscina, de um tom sereno de azul.

Seus olhos tristes têm a cor do oceano escuro.

Os dedos dos pés desse garoto (de 11 anos de idade, obeso, asmático, sem amigos, taciturno, e infantilmente desencantado com o mundo) estão mergulhados na água fria já há tanto tempo, que a pele enrugada assumiu uma forma distorcida semelhante à de um pé velho e aposentado. Ao redor dos braços, ele usa bóias de plástico amarelo, que sua mãe lhe obriga a usar desde que ele quase morrera afogado ali naquela mesma piscina, 1 ano atrás. Ele tinha então 10 anos de idade, e aquela tinha sido sua primeira tentativa de suicídio. Desde então, usava as bóias.

Ao seu lado está a bola de futebol novíssima, que nunca foi chutada, mas que ele guarda como uma forma de amuleto da sorte, de importância quase religiosa. Ela está parada embaixo da palma de sua mão, congelada no tempo e espaço daquele frio final de tarde de Abril. Ele também está ali, encarando o fundo azul da piscina e imaginando sabe-se-lá-o-quê sob as águas, quando o portão intimidador de metal automaticamente se abre para dar passagem ao BMW prateado do pai.

O pai voltou do trabalho mais cedo hoje.

De dentro do tubarão prateado estacionado na garagem, o pai desce e caminha na direção do filho. Nesse exato momento, uma fina camada de chuva começa a cortar a atmosfera, caindo sob suas cabeças e sob toda extensão do retângulo azul entijolado. Quando ele chega ao lado do filho, o menino inclina a cabeça em sua direção, e por alguns breves segundos, no alinhamento daqueles dois olhares tão distantemente próximos, a sintonia se torna perfeita. Nenhuma palavra é dita. O pai tira então uma das mãos do bolso e percorre os dedos pelos cabelos molhados do filho. Depois disso, ele caminha em direção à escada do trampolim. De terno, gravata, relógio de ouro e sapatos de couro, ele escala os úmidos degraus de alumínio.

Lá no alto, parado sob a ponta da prancha – sob a chuva –, aquele homem grisalho, muito sério, sorri por um instante, e logo em seguida mergulha de ponta na imensidão azul.

Os raios da coroa aquática se elevam com violência e explodem em incontáveis partículas de H2O que respingam por toda extensão da parte da borda da piscina em que o menino está sentado; vendo os pingos caírem em seu rosto, ele retira os dedos da água inconscientemente.

Encharcado, o pai submerge em meio ao caos molhado formado pelo movimento das ondas que ele ocasionou, e vai nadando em direção ao filho. Ele sai da piscina e senta, pesado, ao seu lado.

Sabe, ele diz, tem 11 anos que eu comprei essa piscina. Foi quando sua mãe me contou que estava grávida de você. 11 anos. Tem 11 anos que ela está aqui nesse mesmo lugar, e essa é a segunda vez em toda minha vida que eu entro nela.

10

David Cronenberg - Naked Lunch (1991)



O movimento beatnick é um incentivo literário à preguiça como método de trabalho.

O movimento beatnick é um incentivo literário à preguiça como método de trabalho. Nem todos, claro; afinal, existiram também os que podemos chamar de beats verdadeiros, como William S. Burroughs, por exemplo. Em Burroughs, o experimental é a regra; deve-se mergulhar, o mais profundo possível, nos mais obscuros e extremos subterfúgios da ignomínia humana. Caos é brincadeira perto disso. Estamos todos completamente fodidos, nos diz Burroughs.

O que é preocupante, se é que podemos dizer dessa forma, é toda essa idiotice pseudo-hedonista que vem se alastrado desde que esses adolescentes mesquinhos começaram a ler Jack Kerouac e seu On The Road, “vamos todos meter o pé na estrada!”. Deprimente, melhor dizendo, ver esses jovens sonhadores (que acham que podem mudar o mundo, que são todos grandes sensíveis, espíritos elevados, embriagados de poesia, vinho e marijuana, que acreditam em uma forma de vida verdadeiramente verdadeira, algo mágico) serem completamente destruídos assim que se deparam com a crueldade nua e crua das cidades. Atordoados e completamente à deriva, eles são conduzidos – em estado transe – em direção às engrenagens inexoráveis e insaciáveis da sociedade capitalista, sendo espremidos até virar suco de laranja.

Esse é o destino a ser alcançado, mais cedo ou mais tarde, por esse jovem intelectual, que vinha até então se alimentando (culturalmente e fisiologicamente) à custa do pai e da mãe, que sempre – desde seu nascimento – acolheram com carinho o querido parasita; eis que ele se vê então, de repente, por sua conta e risco, e se apreende em sua condição de ser condenado à liberdade, de sobrevivente no mundo.

Isso é um surto espiritual em plena luz do dia, meu caro.

Quantas pessoas, jovens e velhas, estão dispostas, hoje em dia, a sacrificar suas vistas pelos livros (como o fizeram Jorge Luis Borges e James Joyce)? Hein, quantas? É improvável que se conheça pessoalmente, em nossos círculos de amizades, ao menos uma. Quantas pessoas agora, nesse exato instante, estão vivenciando uma experiência realmente profunda dentro de suas mentes…?

Bem menos do que você acredita, pode apostar.

Porra, é difícil pensar em algo realmente espiritual e/ou profundo quando você tem que estar se preocupando constantemente com as contas que ainda não foram pagas, os prazos que devem ser cumpridos, os itens numerados numa lista que chamamos de “agenda”; e o tempo, inexoravelmente fatiado pelas engrenagens metalicamente impiedosas de um relógio, com seus ponteiros afiados decapitando cabeças por aí. A realidade é uma merda, quando você se dá conta disso, ela deixa de simplesmente feder; ela começa a te afogar.

E agora, cadê a estrada, galera?

Esqueça – o sonho acabou.